A figura do arrumador de carros suscita sentimentos e reações contraditórias desde o receio de um risco no carro, um olhar de lado ou até tentativas de erradicação do fenómeno e ações de indignação perante uma prática desviante. Aliás através de uma pesquisa num motor de busca qualquer encontramos sites, páginas do facebook, blogs e artigos de opinião a sugerir o “adeus aos arrumadores de carros” ou dicas como “aprender a enxotá-los”.
Mas afinal, quem são os arrumadores de carros?
Surgiram no espaço público das grandes cidades no início dos anos 90 associados maioritariamente à toxicodependência e à pobreza e indicam (não arrumam! Como corrige um destes indivíduos) lugares de estacionamento em parques, pracetas ou ruelas como estratégia de angariação de recursos. Os estudos sobre arrumadores (Pais, 2001; Nave, 2004; Pereira e Silva, 1999) e a experiência empírica de alguns anos de equipas de rua sugerem a existência de um universo heterogéneo, diversificado e flutuante constituído por múltiplas problemáticas: desde toxicodependentes, alcoólicos, reformados, inválidos, miúdos de rua, sem-abrigo, doentes mentais, entre outros. Estes estudos (Pais, 2001, Pereira e Silva, 1999) evidenciam os vários fatores (desemprego, alcoolismo, toxicodependência, perturbações mentais) que podem levar à condição de arrumador enquanto estratégia de angariação de recursos de sobrevivência. E salientam que apesar da diversidade de situações e trajetórias de vida, a maioria dos indivíduos “têm atrás de si processos de desafiliação crescente face ao trabalho, à escola, à família e amigos” (Pereira e Silva, 1999), ou seja, vivenciaram/ vivenciam um processo de rutura dos laços sociais e isolamento social progressivo que os conduz a uma situação de fim de linha da exclusão social.
Noutra perspetiva, a atividade de arrumação de carros pode ainda ser entendida como uma forma de resistência ao mundo do crime (Matias e Fernandes, 2009), de inserção no mercado de trabalho, ainda que informal (Gomes et al, 2008) ou de desistência pela normalidade face à sua condição de marginal. No contexto europeu parece não existir paralelo à figura do arrumador, mas no Brasil existem por exemplo os flanelinhas (os guardadores e lavadores de carros) e encontramos ainda outros exemplos de figuras que desenvolvem atividades no âmbito da economia informal como é o caso dos squeegee workers1 principal fonte de rendimento a limpeza dos vidros dos carros e que proliferam em muitas cidades dos EUA, Canadá e Inglaterra.
Em Portugal, a prática da arrumação de carros é considerada legal se for atribuída pelas Câmaras Municipais, se bem que a maioria dos arrumadores de carros que ocupam os parques de biscastes nas cidades portuguesas o faz de forma ilegal, o que constitui, de acordo com a alínea f) do n.º 1 do decreto-lei n.º310/2002, uma contraordenação que pode ser punida com uma coima de 60€ a 300 €. No caso da cidade de Leiria apesar de existir um regulamento para o exercício desta atividade desde finais de 2012 nenhum arrumador o requereu e desconhecem essa possibilidade ou os documentos necessários. Note-se que desde abril de 2014 a equipa de rua do projeto Giros na Rua já sinalizou 45 arrumadores de carros na cidade de Leiria. Sintetizando, a figura do arrumador emergiu no mercado informal no contexto urbano na década de 90 associado maioritariamente à toxicodependência e a outros processos de pobreza e exclusão social. Trata-se, por fim, de um grupo heterogéneo com trajetórias de vida marcadas por perdas, ruturas e portanto, por vidas desarrumadas!
Lisete Cordeiro
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Referências bibliográficas
Gomes, Gilmária et al (2008), “Uma investigação etnográfica sobre os flanelinhas que fazem da praça padre Cícero da cidade de Juazeiro do Norte – Ceará um lugar de ordem e trabalho”, comunicação apresentada no XXI Encontro Regional de estudantes de Direito e Encontro Regional de Assessoria Jurídica Universitária, 20 anos de Constituição. Parabéns! Por quê? Crato/Ceará, disponível em http://www.urca.br/ered2008/CDAnais/SDs/SD4.html
Matias, Margarida e Luís Fernandes (2009), “Desarrumar o medo… o arrumador de carros como figura do medo na cidade”, Revista Toxicodependências, 15, (3), pp. 9-22.
Pais, José Machado (2001), Ganchos, Tachos e Biscates – Jovens, Trabalho e Futuro, Porto, Ambar.
Pereira, Álvaro e Delta Silva (1999), “Os arrumadores e os sem-abrigo da cidade de Lisboa: viver da rua, mas nem sempre na rua”, ANAIS Série Sociologia, Lisboa, 2, pp. 231-239.
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